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domingo, 18 de fevereiro de 2018

É DE 1940, MAS PERFEITAMENTE ATUAL!



Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício.
Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de
ajudar a todos - se possível - judeus, o gentio... negros... brancos.
Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim.
Desejamos viver para a felicidade do próximo - não para o seu infortúnio.
Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros? Neste mundo há
espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover todas as nossas
necessidades.
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça
envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito
marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade,
mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos
deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência,
emperdenidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas,
precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem
essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.
A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A próxima natureza dessas coisas é um
apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos
nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo afora...
milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura
seres humanos e encarcera inocentes.
Aos que me podem ouvir eu digo: "Não desespereis!" A desgraça que tem caído sobre nós não
é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço
do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o
poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a
liberdade nunca perecerá.
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam...
que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos
sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação
regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão!
Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não
odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos.
Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade!
No décimo sétimo capítulo de São Lucas é escrito que o Reino de Deus está dentro do homem
- não de um só homem ou um grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o
povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo,
tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto
- em nome da democracia - usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um
mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à
mocidade e segurança à velhice.
É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não
cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o
povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância,
ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o
progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos...

domingo, 11 de fevereiro de 2018

CARNAVAL


A vida é uma tremenda bebedeira.
Eu nunca tiro dela outra impressão.
Passo nas ruas, tenho a sensação
De um carnaval cheio de cor e poeira...
A cada hora tenho a dolorosa
Sensação, agradável todavia,
De ir aos encontrões atrás da alegria
Duma plebe farsante e copiosa...
Cada momento é um carnaval imenso
Em que ando misturado sem querer.
Se penso nisto maça-me viver
E eu, que amo a intensidade, acho isto intenso
De mais... Balbúrdia que entra pela cabeça
Dentro a quem quer parar um só momento
Em ver onde é que tem o pensamento
Antes que o ser e a lucidez lhe esqueça...
Automóveis, veículos, (...)
As ruas cheias, (...)
Fitas de cinema correndo sempre
E nunca tendo um sentido preciso.
Julgo-me bêbado, sinto-me confuso,
Cambaleio nas minhas sensações,
Sinto uma súbita falta de corrimões
No pleno dia da cidade (...)
Uma pândega esta existência toda...
Que embrulhada se mete por mim dentro
E sempre em mim desloca o crente centro
Do meu psiquismo, que anda sempre à roda...
E contudo eu estou como ninguém
De amoroso acordo com isto tudo...
Não encontro em mim, quando me estudo,
Diferença entre mim e isto que tem
Esta balbúrdia de carnaval tolo,
Esta mistura de europeu e zulu
Este batuque tremendo e chulo
E elegantemente em desconsolo...
Que tipos! Que agradáveis e antipáticos!
Como eu sou deles com um nojo a eles!
O mesmo tom europeu em nossas peles
E o mesmo ar conjuga-nos
Tenho às vezes o tédio de ser eu
Com esta forma de hoje e estas maneiras...
Gasto inúteis horas inteiras
A descobrir quem sou; e nunca deu
Resultado a pesquisa... Se há um plano
Que eu forme, na vida que talho para mim
Antes que eu chegue desse plano ao fim
Já estou como antes fora dele. É engano
A gente ter confiança em quem tem ser...
(...)
Olho p'ró tipo como eu que ai vem...
(...)
Como se veste (...) bem
Porque é uma necessidade que ele tem
Sem que ele tenha essa necessidade.
Ah, tudo isto é para dizer apenas
Que não estou bem na vida, e quero ir
Para um lugar mais sossegado, ouvir
Correr os rios e não ter mais penas.
Sim, estou farto do corpo e da alma
Que esse corpo contém, ou é, ou faz-se...
Cada momento é um corpo no que nasce...
Mas o que importa é que não tenho calma.
Não tenciono escrever outro poema
Tenciono só dizer que me aborreço.
A hora a hora minha vida meço
E acho-a um lamentável estratagema
De Deus para com o bocado de matéria
Que resolveu tomar para meu corpo...
Todo o conteúdo de mim é porco
E de uma chatíssima miséria.
Só é decente ser outra pessoa
Mas isso é porque a gente a vê por fora...
Qualquer coisa em mim parece agora

Álvaro de Campos