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segunda-feira, 5 de novembro de 2018



Ressurreição - primeiro romance de Machado de Assis - publicado em 1872, obviamente, não é a sua obra-prima, mas já é um livraço!

Embora seja considerado um livro da fase romântica do autor, e apresente algumas características do estilo, percebemos um romantismo contido, moderado, sem os excessos sentimentais, já mostrando aquela pitada ácida que Machado tempera tão divinamente suas obras. É uma leitura rápida, fluída, envolvente, com uma reviravolta e um final (melhor nem falar desse final, só deixo registrado que eu amei!).

Temos aqui um romance psicológico (será o primeiro romance com esse viés escrito no Brasil?), onde, mais importante que a intriga é entender o caráter e o comportamento dos personagens. O próprio Machado, na Advertência da Primeira Edição, avisa: “Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei o interesse do livro.” Ele escreveu o livro inspirado no pensamento de Shakespeare: “Our doubts are traitors, / And make us lose the good we oft might win, / By fearing to attempt” (Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem que frequentemente poderíamos ganhar, ao termos medo de tentar) e, vamos combinar, conseguiu: essa frase seria uma boa conclusão para a obra!

Vamos ao enredo: Dr. Félix é um médico de meia-idade que vive dos rendimentos duma herança. É um solteirão. Seus relacionamentos não duram mais do que seis meses, até que conhece Lívia, uma viúva e irmã de seu amigo, Viana. 

A história é narrada em terceira pessoa, por um narrador onisciente, e vai nos apresentando melhor o protagonista, Dr, Félix, um homem inseguro, que junto do seu amor por Lívia, conheceu o ciúme e a desconfiança, ao descobrir que seu amigo, Meneses, também está apaixonado pela nossa heroína (será a semente para criar o Bentinho?)...

Quando tudo parece estar se encaminhando para um desfecho feliz, eis que Félix recebe uma carta, que traz uma grande reviravolta para o desenrolar da trama (cabe aqui dizer que gostei muito da força moral da Lívia)...


Fica claro que o autor teve a intenção de nos apresentar um novo modelo de romance, com uma trama mais psicológica e trágica, ao nos deixar com a seguinte afirmação: “Não a há de alcançar nunca, porque o seu coração se ressurgiu por alguns dias, mas esqueceu na separação o sentimento da confiança e a memória das ilusões”.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Cenário

Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado
pascer nas solidões esmeraldinas.

Largos rios de corpo sossegado
dormiam sobre a tarde, imensamente,
— e eram sonhos sem fim, de cada lado.

Entre nuvens, colinas e torrente,
uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.

Que vento, que cavalo, que bravia
saudade me arrastava a esse deserto,
me obrigava a adorar o que sofria?

Passei por entre as grotas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.

As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.

De coração votado a iguais perigos
vivendo as mesmas dores e esperanças,
a voz ouvi de amigos e inimigos

Vencendo o tempo, fértil em mudanças,
conversei com doçura as mesmas fontes,
e vi serem comuns nossas lembranças.

Da brenha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustêm nos longos horizontes,

tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.

Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areias dolorosas,

por onde o passo da ambição rugia;
por onde se arrastava, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.

Escuto os alicerces que o passado
tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
de muros de ouro em fogo evaporado.

Altas capelas cantam-me divinas
fábulas. Torres, santos e cruzeiros
apontam-me altitudes e neblinas.

Ó pontes sobre os córregos! ó vasta
desolação de ermas, estéreis serras
que o sol frequenta e a ventania gasta!

Armado pó que finge eternidade,
lavra imagens de santos e profetas
cuja voz silenciosa nos persuade.

E recompunha as coisas incompletas:
figuras inocentes, vis, atrozes,
vigários, coronéis, ministros, poetas.

Retrocedem os tempos tão velozes
que ultramarinos árcades pastores
falam de Ninfas e Metamorfoses.

E percebo os suspiros dos amores
quando por esses prados florescentes
se ergueram duros punhos agressores.

Aqui tiniram ferros de correntes;
pisaram por ali tristes cavalos.
E enamorados olhos refulgentes

— parado o coração por escutá-los
prantearam nesse pânico de auroras
densas de brumas e gementes galos.

Isabéis, Dorotéias, Heliodoras,
ao longo desses vales, desses rios,
viram as suas mais douradas horas

em vasto furacão de desvarios
vacilar como em caules de altas velas
cálida luz de trêmulos pavios.

Minha sorte se inclina junto àquelas
vagas sombras da triste madrugada,
fluidos perfis de donas e donzelas.

Tudo em redor é tanta coisa e é nada:
Nise, Anarda, Marília… — quem procuro?
Quem responde a essa póstuma chamada?

Que mensageiro chega, humilde e obscuro?
Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja?
Quem foge? Entre que sombras me aventuro?

Quem soube cada santo em cada igreja?
A memória é também pálida e morta
sobre a qual nosso amor saudoso adeja.

O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,

vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.

Eloquência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!…”
(Esse adeus estremece a minha vida.)




Cecília Meireles