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domingo, 31 de dezembro de 2017

PASSAGEM DO ANO

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repelto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
de lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles...e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


(A Rosa do Povo. 7a. ed. Rio de Janeiro : Record, 1991, p. 39-40)

sábado, 30 de dezembro de 2017

Tenho medo de ti e deste amor
Que à noite se transforma em verso e rima.
E o medo de te amar, meu triste amor,
Afasta o que aos meus olhos aproxima.
Conheço as conveniências da retina.
Muita coisa aprendi dos seus afetos:
Melhor colher os frutos na vindima
Que buscá-los em vão pelos desertos.
Melhor a solidão. Melhor ainda
Enlouquecendo os meus olhos, o escuro,
Que o súbito clarão da aurora vinda
Silenciosa dos vãos de um alto muro.
Melhor é não te ver. Antes ainda
Esquecer de que existe amor tão puro.


Hilda Hilst

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017


Quantos anos tenho?

Tenho a idade em que as coisas são vistas com mais calma, mas com o interesse de seguir crescendo.

Tenho os anos em que os sonhos começam trocar carinhos com os dedos e as ilusões se transformam em esperança.

Tenho os anos em que o amor, às vezes, é uma chama louca, ansiosa para se consumir no fogo de uma paixão desejada. E em outras, uma corrente de paz, como um entardecer na praia.

Quantos anos eu tenho? Não preciso de números para marcar, pois meus anseios alcançados, as lágrimas que derramei pelo caminho, ao ver meus sonhos destruídos…
Valem muito mais que isso.

Não importa se faço vinte, quarenta ou sessenta!
O que importa é a idade que eu sinto.

Tenho os anos de que preciso para viver livre e sem medos. 
Para seguir sem medo pelo caminho, pois levo comigo a experiência adquirida e a força de meus anseios.

Quantos anos tenho? Isso não importa a ninguém!
Tenho os anos necessários para perder o medo e fazer o que quero e sinto.

– José Saramago –

domingo, 10 de dezembro de 2017

“O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição. Talvez tivesse alguma vez modificado com sua força selvagem o ar ao seu redor e ninguém nunca o perceberia, talvez tivesse inventado com sua respiração uma nova matéria e não o sabia, apenas sentia o que jamais sua pequena cabeça de mulher poderia compreender. Tropas de quentes pensamentos brotavam e alastravam-se pelo seu corpo assustado e o que neles valia é que encobriam um impulso vital, o que neles valia é que no instante mesmo de seu nascimento havia a substância cega e verdadeira criando-se, erguendo-se, salientando como uma bolha de ar a superfície da água, quase rompendo-a... Ela notou que ainda não adormecera, pensou que ainda haveria de estalar em fogo aberto. Que terminaria uma vez a longa gestação da infância e de sua dolorosa imaturidade rebentaria seu próprio ser, enfim enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só. E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.”


Clarice Lispector

Hoje ela estaria completando 97 anos!

sábado, 9 de dezembro de 2017

“Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só o fervor, mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera.
Não cortaremos os pulsos, ao contrário,costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas.”


Lygia Fagundes Telles

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Com o tempo, você analisa que abrir mão de algo muito importante, só se faz quando se tem um motivo maior que esse algo: seja um propósito, uma crença, um valor íntimo, uma obstinação qualquer que te oriente para essa escolha que já se sabia tão dolorosa. É um sacrifício voluntário por algo mais pleno, mais grandioso em Beleza. E, nestas análises, você descobre outras perdas que são positivas: perde-se também a ansiedade, a insegurança e a ilusão. E você aprende a recomeçar agradecendo por vitórias tão pequenininhas… Como quando é noite e antes de dormir você se enche de gratidão: ‘Deus, obrigada, porque é noite e eu tenho o sono… Que venha um sonho novo, então’.

Marla de Queiroz

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz… e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! “nunca” talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

(Charles Baudelaire.As Flores do mal. Edição bilíngüe. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985: p. 361.)

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

"Tentei dizer muitas coisas, mas acabei descobrindo que amar é muito mais sentir do que dizer." 

José de Alencar
"BASTA-ME um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…"


Cecília Meireles

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Nosso conhecimento não era de estudar em livros.
Era de pegar de apalpar de ouvir e de outros sentidos.
Seria um saber primordial?
Nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amor
e não por sintaxe.
A gente queria o arpejo. O canto. O gorjeio das palavras.
Um dia tentamos até de fazer um cruzamento de árvores
com passarinhos
para obter gorjeios em nossas palavras.
Não obtivemos.
Estamos esperando até hoje.
Mas bem ficamos sabendo que é também das percepções
primárias que nascem arpejos e canções e gorjeios.
Porém naquela altura a gente gostava mais das palavras
desbocadas.
Tipo assim: Eu queria pegar na bunda do vento.
O pai disse que vento não tem bunda.
Pelo que ficamos frustrados.
Mas o pai apoiava a nossa maneira de desver o mundo
que era a nossa maneira de sair do enfado.
A gente não gostava de explicar as imagens porque
explicar afasta as falas da imaginação.
A gente gostava dos sentidos desarticulados como a
conversa dos passarinhos no chão a comer pedaços de
mosca.
Certas visões não significavam nada mas eram passeios
verbais.
A gente sempre queria dar brazão às borboletas.
A gente gostava bem das vadiações com as palavras do
que das prisões gramaticais.
Quando o menino disse que queria passar para as
palavras suas peraltagens até os caracóis apoiaram.
A gente se encostava na tarde como se a tarde fosse
um poste.
A gente gostava das palavras quando elas perturbavam
os sentidos normais da fala.
Esses meninos faziam parte do arrebol como
os passarinhos.
Manoel de Barros

terça-feira, 7 de novembro de 2017

"O verdadeiro gozo da obra poética reside na libertação de tensões em nossas vidas= psíquica. Talvez este resultado obedeça em grande parte ao fato de que o poeta nos permite gozar de nossas próprias fantasias sem vergonha e sem escrúpulos." 

Roberto Piva

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

"Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso."

Mia Couto

terça-feira, 3 de outubro de 2017

A UM AUSENTE


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

domingo, 10 de setembro de 2017

     Depois de passar a noite rasgando tudo aquilo que me cobria, quero tecer a teia da minha vida novamente, porém, desta vez, irei tecê-la usando mais leveza, mas suavidade, não quero um manto que me proteja da vida, ao contrario, quero um manto que me permita ver e sentir a vida! 

     Descobri que não é me protegendo da vida que me protegerei do sofrimento, ao contrario quem se esconde sofre muito mais! Então opto pelo vento no rosto, pelo cheiro de terra molhada, pelo joelho ralado dos tombos, pelas lagrimas das tentativas infrutíferas, mas também pelo brilho no olho da esperança de dar certo, pelo coração aquecido por um desejo a ser buscado ...

Talvez não seja o caminho mais fácil, mas creio que é o caminho mais seguro, porque não importa o atalho que eu escolha sempre voltarei para estrada principal que me leva para mim mesma, então de que me adiantará fugir? Melhor aceitar e enfrentar a estrada, sem perder a leveza, sem deixar de ver a beleza ... afinal são sempre os espinhos que protegem a rosa.

     Não quero estar certa, quero estar em paz, decidi que levarei comigo apenas o que sinto, o que desejo, a minha essência, a opinião, os anseios, os medos, os rótulos das outras pessoas são demasiados pesados e desnecessários, logo não quero e nem irei carregar, se eu errar que seja por mim mesma e se houverem consequências, que certamente terão que sejam minhas!

 Não tenho medo de julgamentos, de ser incompreendida e, no fundo, nem da solidão tenho mesmo é medo de mim mesma, de me olhar nos olhos e não me ver ... descobri que os meus julgamentos são muito mais cruéis do que os das outras pessoas, descobri que meus medos e minhas culpas pesam muito mais do que o que possam me dizer ou me rotular ... esses sim tocam fundo minha alma e a dilaceram ... por isso, a partir de hoje, vou fazer o caminho de volta para casa, de volta para mim mesma e me reconciliar com todos os meus aspectos ... com os meus desejos, com meus sonhos !

terça-feira, 5 de setembro de 2017

   Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez é a desilusão de um quase. É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi. Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou. Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

   Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto. A resposta eu sei de cór, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados. Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz. A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai. Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza. O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

   Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém,preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer. Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.


Sarah Westphal

domingo, 3 de setembro de 2017

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é...

Fernando Pessoa

sábado, 2 de setembro de 2017

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.


(Cecília Meireles)


domingo, 27 de agosto de 2017

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

Florbela Espanca


O que você me pede, eu não posso fazer.
Assim você me perde e eu perco você.
Como um barco perde o rumo.
Como uma árvore no outono, perde a cor.

O que você não pode, eu não vou te pedir.
O que você não quer, eu não quero insistir.
Diga a verdade, doa a quem doer,
Doe sangue e me de seu telefone.

Todos os dias, eu venho ao mesmo lugar.
Às vezes fica longe, difícil de encontrar.
Mas quando o neon é bom.
Toda noite é noite de luar.

No táxi que me trouxe até aqui, Julio Iglesias me dava razão.
No clipe Paul Simon tava de preto, mas na verdade não era não.
Na verdade "nada" é uma palavra esperando tradução.

Toda vez que falta luz.
Toda vez que algo nos falta.
O invisível nos salta aos olhos.
Um salto no escuro, da piscina.

O fogo ilumina muito, por muito pouco tempo.
Em muito pouco tempo, o fogo apaga tudo, tudo um dia vira luz.
Toda vez que falta luz.
O invisível nos salta aos olhos.

Ontem à noite, eu conheci uma guria.
Já era tarde, era quase dia.
Era o princípio, num precipício.
Era o meu corpo que caía.

Ontem à noite, a noite "tava" fria.
Tudo queimava, mas nada aquecia.
Ela apareceu, parecia tão sozinha.
Parecia que era minha, aquela solidão.

Ontem à noite, eu conheci uma guria que eu já conhecia.
De outros carnavais, com outras fantasias,
Ela apareceu, parecia tão sozinha.
Parecia que era minha aquela, solidão.
No inicio era um precipício, um corpo que caía.
Depois virou um vicio, acordar no outro dia.
Ela apareceu, parecia tão sozinha.
Parecia que era minha aquela, solidão.


quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Dessa água eu não beberei
Eu cansei de dizer
Eu jurava que não
Mas no fundo queria você

A cabeça dá ordens
Que o coração não aceita
E se o caso é paixão
Simplesmente ele nada respeita

De repente
Sem mais nem porquê
Você liga pra mim
Diz que se arrependeu
Que me ama
e coisas assim
Começo a sonhar
Me deixo levar
Nem penso em medir conseqüências
Se de novo eu tiver que chorar
- paciência...
O amor me venceu
O orgulho perdeu
A boca sorrindo
E os olhos vermelhos
A cabeça de pé
E o coração de joelhos

Ah, já não sou
Dona de mim
Eu jurava que não
E de novo estou amando assim


(Reginaldo Bessa)

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

AS SEM-RAZÕES DO AMOR

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

É tão suave a fuga deste dia,
Lídia, que não parece, que vivemos.
Sem dúvida que os deuses
Nos são gratos esta hora,

Em paga nobre desta fé que temos
Na exilada verdade dos seus corpos
Nos dão o alto prêmio
De nos deixarem ser

Convivas lúcidos da sua calma,
Herdeiros um momento do seu jeito
De viver toda a vida
Dentro dum só momento,

Dum só momento, Lídia, em que afastados
Das terrenas angústias recebemos
Olímpicas delícias
Dentro das nossas almas.

E um só momento nos sentimos deuses
Imortais pela calma que vestimos
E a altiva indiferença
Às coisas passageiras

Como quem guarda a c'roa da vitória
Estes fanados louros de um só dia
Guardemos para termos,
No futuro enrugado,

Perene à nossa vista a certa prova
De que um momento os deuses nos amaram
E nos deram uma hora
Não nossa, mas do Olimpo.

Ricardo Reis

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Soneto de Inspiração

Não te amo como uma criança, nem
Como um homem e nem como um mendigo
Amo-te como se ama todo o bem
Que o grande mal da vida traz consigo.

Não é nem pela calma que me vem
De amar, nem pela glória do perigo
Que me vem de te amar, que te amo; digo
Antes que por te amar não sou ninguém.

Amo-te pelo que és, pequena e doce
Pela infinita inércia que me trouxe
A culpa é de te amar — soubesse eu ver

Através da tua carne defendida
Que sou triste demais para esta vida
E que és pura demais para sofrer.


(Vinícius de Moraes)

sábado, 5 de agosto de 2017

Eu queria fazer parte das árvores como os
pássaros fazem.
Eu queria fazer parte do orvalho como as
pedras fazem.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu não poderia
fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem.
Então a razão me falou: o homem não
pode fazer parte do orvalho como as pedras
fazem.
Porque o homem não se transfigura senão
pelas palavras.
E era isso mesmo.


Manoel de Barros

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas


(Carlos Drummond de Andrade)

domingo, 23 de julho de 2017

Saudades

Saudades! Sim.. talvez.. e por que não?…
Se o sonho foi tão alto e forte
Que pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!
Esquecer! Para quê?… Ah, como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como o pão.
Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar
Mais decididamente me lembrar de ti!
E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais saudade andasse presa a mim!


Florbela Espanca, do livro “Sóror saudades”.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Subversiva

A poesia

Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.


(Ferreira Gullar)

segunda-feira, 17 de julho de 2017

"A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogio"


Manoel de Barros

domingo, 9 de julho de 2017

"Que haverá com a lua que sempre que a gente a olha é com o súbito espanto da primeira vez?"

Mário Quintana


terça-feira, 4 de julho de 2017

Metas de Leitura - Julho/2017

Buenas,


Minhas metas de leitura para julho estão tão audaciosas  que decidi postar para "dar uma pressãozinha no cumprimento", não vou mentir: duvido que consiga cumprir, mas isso não quer dizer que não tentarei com afinco!

Chega de “mimimi” e vamos a lista dos livros:





Titulo: A Fúria dos Reis

Autor: George R. R.Martin

Editora: Leya

Páginas: 656

Este livro estou lendo com alguns amigos (malucos) que decidiram ler toda a saga até o final do ano – em junho lemos o primeiro: A Guerra dos Tronos – estou adorando a leitura, mesmo neste ritmo alucinado, hehe.



Titulo: O Feitiço da Sombra

Autor: Nora Roberts

Editora: Arqueiro

Páginas: 288

Embora não seja meu estilo de leitura, eu sempre me rendo para as histórias que envolvem magia, acho a autora muito óbvia e as histórias sempre possuem o mesmo “esqueleto”, não me desafiam, mas me fazem suspirar... então vale!



Titulo: Medo Clássico

Autor: Edgar Allan Poe

Editora: Darkside

Páginas: 384

Esta leitura será para a discussão do Clube de Leitura da Casa de Cultura Mário Quintana do qual participo. Este mês iremos ler os contos do Poe, já li O gato Preto e simplesmente adorei, estou louca para ler o resto!



Titulo: Vida e Destino

Autor: Vassili Groissman

Editora: Alfaguara

Páginas: 920

Esta será uma leitura coletiva com o pessoal dos blogs Lido Lendo e Livrada, sem contar que é uma leitura obrigatória do Desafio Livrada 2017.



Titulo: Vinte Mil Léguas Submarinas

Autor: Julio Verne

Editora: Zahar

Páginas: 504

Acho que um dos poucos clássicos da literatura que não tinha “aquela” vontade de ler, embora só ouça elogios da obra. Vou ler para a discussão do Clube do Livro Online.



Titulo: Olhos Dágua

Autor: Conceição Evaristo

Editora: Pallas

Páginas: 116


A biblioteca pública municipal de Porto Alegre promove o grupo de leitura “Leia Mulheres”, onde todo mês lemos e debatemos livros de autoria feminina, um lindo e delicioso projeto.




Me desejem sorte, pois vou precisar!!!!

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
Tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais do que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
Eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Manoel de Barros

quinta-feira, 29 de junho de 2017

"É língua muito transitiva a dos pássaros.
Não carece de conjunções nem de abotoaduras.
Se comunica por encantamentos."

Manoel de Barros

domingo, 18 de junho de 2017

Saudade
Saudade de tudo!…
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!…
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim…
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!…
Pressa!…
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!…
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo…


João Guimarães Rosa, no livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira
"Só mesmo a beleza das coisas simples para nos salvar da frieza das coisas mornas."

Ana Jácomo



" Olhamos eternamente
para as estrelas
como mendingos
que eternamente
olham para as mãos. "


Hilda Hilst

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Tu tens um medo:
Acabar
Não vês que acabas todo o dia
Que morres no amor
Na tristeza
Na dúvida
No desejo
Que te renovas todo o dia
No amor
Na tristeza
Na dúvida
No desejo
Que és sempre outro
Que és sempre o mesmo
Que morrerás por idades imensas
Até não teres medo de morrer

E então serás eterno.




Cecília Meireles

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

As rosas do tempo

Admirável espírito dos moços,
a vida te pertence. Os alvoroços,

as iras e entusiasmos que cultivas
são as rosas do tempo, inquietas, vivas.

Erra e procura e sofre e indaga e ama,
que nas cinzas do amor perdura a flama.



Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 13 de junho de 2017

"Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio e parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou."


Adélia Prado

domingo, 14 de maio de 2017

XXI
À minha mãe.
Sei que um dia não há (e isso é bastante
A esta saudade, mãe!) em que a teu lado
Sentir não julgues minha sombra errante,
Passo a passo a seguir teu vulto amado.
- Minha mãe! minha mãe! – a cada instante
Ouves. Volves, em lágrimas banhado,
O rosto, conhecendo soluçante
Minha voz e meu passo acostumado.
E sentes alta noite no teu leito
Minh’alma na tua alma repousando,
Repousando meu peito no teu peito…
E encho os teus sonhos, em teus sonhos brilho,
E abres os braços trêmulos, chorando,
Para nos braços apertar teu filho!


( Olavo Bilac )

quarta-feira, 10 de maio de 2017

isso de querer ser
exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

(Paulo Leminski)

terça-feira, 9 de maio de 2017

A Bela e a Fera

Ouve a declaração, oh bela
De um sonhador titã
Um que dá nó em paralela
E almoça rolimã
O homem mais forte do planeta
Tórax de Superman
Tórax de Superman
E coração de poeta

Não brilharia a estrela, oh bela
Sem noite por detrás
Tua beleza de gazela
Sob o meu corpo é mais
Uma centelha num graveto
Queima canaviais
Queima canaviais
Quase que eu fiz um soneto

Mais que na lua ou no cometa
Ou na constelação
O sangue impresso na gazeta
Tem mais inspiração
No bucho do analfabeto
Letras de macarrão
Letras de macarrão
Fazem poema concreto

Oh bela, gera a primavera
Aciona o teu condão
Oh bela, faz da besta fera
Um príncipe cristão
Recebe o teu poeta, oh bela
Abre teu coração
Abre teu coração
Ou eu arrombo a janela

(Nando Reis)
Escute só, isto é muito sério.

Anda, escuta que isso é sério!

O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos atrás o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação? 

Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao invés de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem vir do misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda bem.

O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão? 

Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.

Ah é! Eu gosto de você. A luz entrou torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você! A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas. Desde aquele outro lado do Sol até esse tremendo agora. 

Hoje ainda faz bastante frio. As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de cowboys.

[suspiro]

O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas, por causa do que me ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso batismo do voô para nossa persistência no amor.João molhou a testa de Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações. 

De que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar.

É… é impossível viver no país de Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta, isso não é impossível, não.

Escuta, isso é sério!

Andamos crescendo juntos, distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa pele se estende, nosso entendimento, teso, também. O século cresce conosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.

Portanto, escute.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.

Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa, vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem. E, no caminho até lá, vem dançar comigo, vem!

Matilde Campilho

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Meu coração tropical está coberto de neve, mas
Ferve em seu cofre gelado
E à voz vibra e a mão escreve mar
Bendita lâmina grave que fere a parede e traz
As febres loucas e breves
Que mancham o silêncio e o cais
Roserais, Nova Granada de Espanha
Por você, eu, teu corsário preso
Vou partir a geleira azul da solidão
E buscar a mão do mar
Me arrastar até o mar, procurar o mar
Mesmo que eu mande em garrafas
Mensagens por todo o mar
Meu coração tropical partirá esse gelo e irá
Com as garrafas de náufragos
E as rosas partindo o ar
Nova Granada de Espanha
E as rosas partindo o ar


(Aldir Blanc / música de João Bosco)

Antes do Nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

Adélia Prado

domingo, 7 de maio de 2017

Quero saber se você vem comigo
a não andar e não falar,
quero saber se ao fim alcançaremos
a incomunicação; por fim
ir com alguém a ver o ar puro,
a luz listrada do mar de cada dia
ou um objeto terrestre
e não ter nada que trocar
por fim, não introduzir mercadorias
como o faziam os colonizadores
trocando baralhinhos por silêncio.
Pago eu aqui por teu silêncio.
De acordo, eu te dou o meu
com uma condição: não nos compreender


(Pablo Neruda)
Sobre as reflexões de uma semana bem montanha-russa:

Dramas excessivos e peripécias mil são ótimas no cinema e na literatura. Mas na vida real, o que nos traz bem estar , sentimento de pertencimento, paz de espírito é conversar com quem apreciamos e nos entende e nos aceita como somos, é trabalhar naquilo que gostamos , é fazer o que se bem entende no final de semana, mesmo que seja simplesmente vagar pela casa de pijama... afinal, é tão bom estar em paz conosco mesmo e com quem está ao nosso redor. A gente descobre que nem tudo é para nós, que a gente não precisa importar um modelo de felicidade aceito pela maioria, que para nós passar o Carnaval vendo Netflix pode ser muito mais divertido.

Embora a gente entenda que cada coisa tem o seu tempo, o seu ritmo, que não adianta dar murro em ponta de faca, alguns momentos o coração se afoba e precisamos respeitar isso, trata-lo com carinho e cuidado, mas, sem sucumbir aos pedidos dramáticos e malucos que ele faz. 

A gente aprende que devemos lutar pelos nossos sonhos, mas se não rolar, não rolou, descobriremos novos caminhos, novas possibilidades. Nada é tão definitivo!

A gente percebe que ter dinheiro é bom, mas que ter tempo para relaxar e curtir é fundamental. A gente descobre que trabalhar por amor é delicioso, mas que o pagamento precisa ser justo pois as contas não se pagam sozinhas. Às vezes , a gente abre mão de um passeio ou de um projeto porque admite que está cansado, que anda trabalhando demais, que precisa de um tempo para ler aquela pilha de livros. Que a gente não precisa ser a super heroína o tempo todo. Que a gente não precisa dizer sim para todos os convites e que a gente deve tratar a todos com respeito, mas não precisamos ser amigos de todo mundo nem permitir que nos manipulem pois somos bonzinhos.

A gente descobre que pode voltar atrás sim se pegou o caminho errado. Que não há vergonha alguma em se reconhecer meio perdido neste mundo louco. Que a gente não precisa provar nada a ninguém nem a nós mesmos. Que a gente vive do jeito que é possível, que a gente consegue viver. Que a vida não é fácil, mas, mesmo assim encantadora, e que a gente não precisa complica-la ainda mais com autoenganos e pessoas que só tumultuam. Que fazer seu trabalho com amor e viver com dignidade podem ser grandes formas de sucesso!

sábado, 6 de maio de 2017

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

(Manoel de Barros)

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verás, só de cinza franzida,
mortas intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.


(Cecília Meireles)

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!… E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!

Não sei que paisagista doidivanas
Mistura os tons… acerta… desacerta…
Sempre em busca de nova descoberta,
Vai colorindo as horas quotidianas…

Jogos da luz dançando na folhagem!
Do que eu ia escrever até me esqueço…
Pra que pensar? Também sou da paisagem…

Vago, solúvel no ar, fico sonhando…
E me transmuto… iriso-me… estremeço…
Nos leves dedos que me vão pintando!


(Mário Quintana)

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Ando por aí querendo te encontrar
Em cada esquina, paro em cada olhar
Deixo a tristeza e trago a esperança em seu lugar
Que o nosso amor pra sempre viva, minha dádiva
Quero poder jurar que essa paixão jamais será
Palavras, apenas
Palavras pequenas
Palavras

Ando por aí querendo te encontrar
Em cada esquina paro em cada olhar
Deixo a tristeza e trago a esperança em seu lugar
Que o nosso amor pra sempre viva, minha dádiva
Quero poder jurar que essa paixão jamais será
Palavras, apenas
Palavras pequenas
Palavras, momentos
Palavras palavras
Palavras palavras
Palavras ao vento

Ando por aí querendo te encontrar
Em cada esquina paro em cada olhar
Deixo a tristeza e trago a esperança em seu lugar
Que o nosso amor pra sempre viva, minha dádiva
Quero poder jurar que essa paixão jamais será
Palavras, apenas
Palavras pequenas
Palavras, momentos
Palavras palavras
Palavras palavras
Palavras ao vento
Palavras, apenas, apenas
Palavras pequenas
Palavras

(Cássia Eller)


terça-feira, 2 de maio de 2017

Bem ou mal, decidi te perdoar
decidi abrir as portas
ir varrendo as folhas mortas
desentupir a minha aorta
e livrar este lugar.
Pode ir, pode ir tranquilo
já acalmei a minha ira
e eu já sei que a terra gira
mesmo se eu quiser parar.
Não quero justificativas
nem respostas assertivas
(me dizendo que lamenta,
que um dia a mágoa assenta,
e que qualquer hora dessas,
eu aprendo a aceitar).
Não diga nada
pois tantos danos consumados
já ficaram no passado
e estou dando passos largos
pra poder cicatrizar.
Eu quero ver você voando
usufruindo do desmando
libertando as suas ânsias
para aumentar essa distância
até a última instância
pra qual eu possa te afastar.
Siga em frente
não olhe para trás
ainda que você se arrependa
o passado não está à venda
para alterar suas legendas
em cada uma das cenas
que você queria apagar.
Siga em frente,
eu te dou essa anistia
assino a sua alforria
por ato de sua autoria
que eu já parei de questionar.
Voe, voe sim
procure uma nova casa
e bata suas asas,
cada vez mais forte,
rumo a um outro norte
para comemorarmos a morte
dessa mágoa, enfim.
Voe perdoado
voe libertado
voe todo dia,
tranquilamente,
cada vez
para mais longe
de mim...


"Não faz diferença
se você vem amanhã
ou não vem
desisti de esperar
por alguém
cuja ausência
me faz companhia."

(desconheço autor)
Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim, que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo; repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada.

Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você


Chico Buarque


SONETO DA FIDELIDADE

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

(Vinícius de Moraes)

domingo, 30 de abril de 2017

A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.

E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,

entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.


(Carlos Drummond de Andrade)

sábado, 29 de abril de 2017

"Nos altos ramos de árvores frondosas
O vento faz um rumor frio e alto.
Nesta floresta, em este som me perco
E sozinho medito.

Assim no mundo, acima do que sinto,
Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma,
E nada tem sentido - nem a alma
Com que penso sozinho.

Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto


Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus tratos


Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto


Eu aguento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu aguento até os caretas
E suas verdades perfeitas


O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto


Eu aguento até os estetas
Eu não julgo competência
Eu não ligo pra etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades


O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Não, não gosto dos bons modos
Não gosto


Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem


Eu gosto dos que têm fome
E morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem


Adriana Calcanhoto


Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.


João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Sensorial

Obturação, é da amarela que eu ponho.
Pimenta e cravo,
mastigo à boca nua e me regalo.
Amor, tem que falar meu bem,
me dar caixa de música de presente,
conhecer vários tons pra uma palavra só.
Espírito, se for de Deus, eu adoro,
se for de homem, eu testo
com meus seis instrumentos.
Fico gostando ou perdôo.
Procuro sol, porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria.

Adélia Prado