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sexta-feira, 31 de março de 2017

Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mário Quintana

quinta-feira, 30 de março de 2017

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…

Mário Quintana
Cansou. Pegou as chaves e os desejos de recomeço. Pegou coragem e o caminho ao lado. 

Bateu a porta, rasgou os mapas, desfez os planos, refez as malas, destraçou roteiros.
Foi tarde. Deu tempo de se perder nos quases e revisitar lamentos. De doer as incertezas e deixar a lembrança adornar os pensamentos. Mas foi. Perdeu as listas, não leu os rótulos, evitou ponteiros. Era o vento o seu termômetro.
E numa noite que parecia eterna, fechou os olhos, chamou o sono. Dormiu nublada. Acordou sol. Assim, sem mais.
Abriu as cortinas. Uma luz lhe ardeu os olhos. Entendeu o recado. O alívio sorrindo por fora, o medo pulsando por dentro. O sentimento atravessado no peito, as interrogações pedindo espaço pra sua paz. Ignoradas. Seguiu a canção e preferiu apostar pra ver se tinha a sorte de ganhar.
Saiu. Pra ser aprendiz, pra ser maior. Pra procurar abrigo em si mesma, pra encontrar um abraço no que ainda não viu.
Vestiu- se de nuvem, de reticências, de amanhã.
Cabelo solto, saia pra rodar, um sorriso sem motivo e pés dispostos a descobrir esquinas. 
Estava feito.
E de riscos, de luas, velhos sonhos e novas danças bordou os passos que viriam.
Estava inteira, entregue, intensa. Estava descalça. 
E isso não era um problema.



Yohana Senfer


Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.


Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que triste.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.


Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor, 
Apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.


Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço.
Que essa tensão que me corroe por dentro seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é um vulcão.


Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei...


Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito. 
E que o teu silêncio me fale cada vez mais. 
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.


Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba. 
E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a platéia e a outra metade, a canção.


E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor e a outra metade... também.


Oswaldo Montenegro

terça-feira, 28 de março de 2017

Soneto LXVI

Não te quero senão porque te quero
e de querer-te a não querer-te chego
e de esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Te quero só porque a ti te quero,
te odeio sem fim, e odiando-te te rogo,
e a medida de meu amor viageiro
é não ver-te e amar-te como um cego.

Talvez consumirá a luz de janeiro,
seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.

Nesta história só eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.


(Pablo Neruda)

segunda-feira, 27 de março de 2017

"Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma ideia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. […] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei. "


Clarice Lispector
Todo o sentimento

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente
Preciso conduzir
Um tempo de te amar
Te amando devagar e urgentemente

Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez

Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente

Depois de te perder
Te encontro, com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu


Chico Buarque

domingo, 26 de março de 2017

O livro que você me enviou nunca chegou. 
Nesse nosso canal energético 
parece haver um lugar onde as coisas 
se desmaterializam. 
A música que a gente ia fazer juntos 
ficou só nos nossos corações.
Como uma beleza que se guarda,
resiste a vir ao mundo,
tão delicada
que o excesso de oxigênio
dos pensamentos
poderia enferrujá-la.
Porque parece mesmo que o que quer que seja
que nascesse entre nós seria sem raiz,
uma flor que brotou no ar,
um sonho que a gente esqueceu.
Nunca chegaram tão perto de mim
os seus olhos,
o seu cheiro não sei adivinhar.
Você fica naquele lugar
onde eu guardo os meus livros preferidos
(mesmo o seu livro nunca tendo chegado para fazer parte da coleção).
Fica como nietzsche e maiakovski,
companheiros diários de filosofia.
O que nos separa são século.
Há um buraco negro engolindo os caminhos,
Há um espaço de rodas dentadas
triturando em particular invisíveis
tudo o que a gente tenta construir para se alcançar.
E no entanto, e mesmo assim,
existimos um no outro.


Clara Baccarin
Neologismo

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo
Teadoro, Teodora.


Manuel Bandeira
Simplesmente aconteceu
Não tem mais você e eu
No jardim dos sonhos
No primeiro raio de luar
Simplesmente amanheceu
Tudo volta a ser só eu

Nos espelhos
Nas paredes de qualquer lugar
Não tem segredo
Não tenha medo de querer voltar
A culpa é minha eu tenho vício de me machucar

De me machucar
Lentamente aconteceu
Seu olhar largou do meu
Sem destino

Sem caminho certo pra voltar
Não tem segredo
Não tenha medo de querer voltar
A culpa é minha eu tenho vício de me machucar

De me machucar
Ninguém ama porque quer
O amor nos escolheu você e eu
Não tem segredo
Não tenha medo de querer voltar

A culpa é minha eu tenho vício de me machucar
De me machucar
Simplesmente aconteceu
Quem ganhou e quem perdeu
Não importa agora


(Ana Carolina)


sábado, 25 de março de 2017

Sabe, já faz tempo,
Que eu queria te falar,
Das coisas que trago no peito.

Saudade,
Já não sei se é a palavra certa para usar
Ainda lembro do seu jeito.

Não te trago ouro,
Porque ele não entra no céu,
E nenhuma riqueza deste mundo.
Não te trago flores,
Porque elas secam e caem ao chão.
"Te trago" os meus versos simples,
Mas que fiz de coração.

Sabe, já faz tempo,
Que eu queria te falar
Das coisas que trago no peito.

Saudade,
Já não sei se é a palavra certa para usar
Ainda lembro do seu jeito.

Não te trago ouro,
Porque ele não entra no céu,
E nenhuma riqueza deste mundo.
Não te trago flores,
Porque elas secam e caem ao chão.
Te trago os meus versos simples,
Mas que fiz de coração.


(Chimarruts)
Fanatismo

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver.
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No mist'rioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!...

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."

Florbela Espanca


sexta-feira, 24 de março de 2017

Gosto de pensar a vida como aquela forma para escrever poemas dadaístas, onde vamos retirando do saco do cotidiano os acontecimentos e personagens da nossa narrativa. A grande questão é como fazer divisão de personagens, na literatura temos, razoavelmente claro, quem é o principal e quem são os secundários, na vida, essa classificação se torna mais difícil, é preciso definir com cuidado. Algumas pessoas – personagens - a presença tem muita relevância e estarão presentes até o final, enquanto outras, são cuidadosamente colocadas no texto (existência) de maneira estratégica para dar mais sabor aos momentos essenciais. O problema é que nunca sabemos de antemão sua relevância.
A angústia da vida, às vezes, está em não poder escolher o que iremos retirar do saco, não saber que direção tomar ou quais argumentos escolher... e poucas coisas são tão dolorosas e libertadoras quanto aquele momento em que tomamos a decisão de confiar nas próprias asas e voar. Pode ser para longe ou perto, mas o fato é que é preciso de um bocado do sonho surrealista para escrever o voo da própria narrativa, o que, muitas vezes, é mais difícil do que se pode imaginar.
Alçar voo é mudar. Então, o primeiro princípio da dinâmica ou da inércia já serve como pista da resistência que qualquer corpo (pessoa) oferece frente à mudança. Transformar-se requer arrancar a raiz do solo inerte e dar-lhe asas, impulsionando-se tanto vertical quanto horizontalmente,erguendo-se e jogando-se para a frente de forma simultânea.
A graça do voo existencial está em saber deixar algo para trás,como uma raiz que se desprende do solo. Voar não é levitar. Levita quem não tem peso, não tem bagagem. Voa quem sabe espalhar as asas, equilibrando o peso de uma história vivida deixando, assim, de sentí-la em um só membro. O voo é o próprio peso existencial transformado em ar.
Portanto, como em um bom livro, não há problemas em escrever situações coadjuvantes, o problema reside em nos perdemos por não conseguirmos perceber que a trama que está secando, tornando-se casulos de asas, sufocados em forma de raiz, que é preciso retirar palavras (acontecimentos) do saco para continuar escrevendo uma boa história...

terça-feira, 21 de março de 2017

Se entrares, ó meu anjo, alguma vez
Na solidão onde eu sonhava em ti,
Ah! vota uma saudade aos belos dias
Que a teus joelhos pálido vivi!

Adeus, minh’alma, adeus! eu vou chorando...
Sinto o peito doer na despedida...
Sem ti o mundo é um deserto escuro
E tu és minha vida...

Só por teus olhos eu viver podia
E por teu coração amar e crer...
Em teus braços minh’alma unir à tua
E em teu seio morrer!

Mas se o fado me afasta da ventura,
Levo no coração a tua imagem...
De noite mandarei-te os meus suspiros
No murmúrio da aragem!

Quando a noite vier saudosa e pura,
Contempla a estrela do pastor nos céus,
Quando a ela eu volver o olhar em pranto...
Verei os olhos teus!

Mas antes de partir, antes que a vida,
Se afogue numa lágrima de dor,
Consente que em teus lábios num só beijo
Eu suspire de amor!

Sonhei muito! sonhei noites ardentes
Tua boca beijar... eu o primeiro!
A ventura negou-me... mesmo até
O beijo derradeiro!

Só contigo eu podia ser ditoso,
Em teus olhos sentir os lábios meus!
Eu morro de ciúme e de saudade...
Adeus, meu anjo, adeus!


(Álvares de Azevedo, Lira dos Vinte Anos)

terça-feira, 14 de março de 2017

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero um amor feinho.


(Adélia Prado)

segunda-feira, 13 de março de 2017

A melhor coisa de ter amigos é a felicidade de dividir com o outro o que se vive, a confiança, a alma que podemos sentir e tocar e nos tocará e sentirá de volta, no sorriso bem dado, no ombro encostado, no silêncio respeitado, no abraço acolhido, no afeto que dirá que tudo vai dar certo, no olhar que deixará tudo claro.
​É uma relação sem posse, só liberdade, voo junto, companheirismo. É você ficar feliz com a realização do outro. É torcer pelo outro. É chorar junto, seja de alegria ou de tristeza. É reciprocidade.
​Sem amigos a vida é cinza, sem cor, sem graça, sem amor. ​Amizade faz com que a gente se sinta infinito... é a empatia de chegar ao outro, o acolher em si a alma do outro. Amizade é gesto, abraço, aconchego, lealdade, enfim, é a relação que move e muda o mundo, que nos torna mais humanos...

domingo, 12 de março de 2017

Ressentimento

Resto, rasgado e roído do sentimento
Flor, frangida e frustrada, arrasada, tolhida por dentro
Despetalada de cordiais cumprimentos
Espinhando, espinhada, a cívica inamorata do amor-tormento.

Não te disseram que, no jardim dos amores,
Mesmo se flor, se for, sem pudores
Ainda sim, no fim: húmus de dores?!


(roubei o poema do meu amigo, não resisti!)

sábado, 11 de março de 2017

Lua adversa

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…


Cecília Meireles


sexta-feira, 10 de março de 2017

Nem todo mundo ficará em nossas vidas, mas os encontros especiais jamais sairão de nossos corações. É assim que a gente continua.

quarta-feira, 8 de março de 2017


Tu és divina e graciosa, estátua majestosa
Do amor, por Deus esculturada
E formada com ardor
Da alma da mais linda flor de mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor
Se Deus me fora tão clemente aqui neste ambiente
De luz, formada numa tela deslumbrante e bela
Teu coração, junto ao meu lanceado
Pregado e crucificado sobre a rósea cruz do arfante peito teu

Tu és a forma ideal, estátua magistral
Oh alma perenal do meu primeiro amor, sublime amor
Tu és de Deus a soberana flor
Tu és de Deus a criação
Que em todo coração sepultas um amor
O riso, a fé, a dor em sândalos olentes cheios de sabor
Em vozes tão dolentes como um sonho em flor
És láctea estrela, és mãe da realeza
És tudo enfim que tem de belo
Em todo resplendor da santa natureza

Perdão se ouso confessar-te, eu hei de sempre amar-te
Oh flor, meu peito não resiste
Oh meu Deus, o quanto é triste
A incerteza de um amor que mais me faz penar em esperar
Em conduzir-te um dia ao pé do altar
Jurar aos pés do Onipotente em preces comoventes
De dor, e receber a unção da tua gratidão
Depois de remir meus desejos em nuvens de beijos
Hei de envolver-te até meu padecer de todo fenecer

(Pixinguinha e Otávio de Souza)

terça-feira, 7 de março de 2017

"Olhos baços: sujos e ressequidos com a poeira do cotidiano. 0 vento solar a encher de luz as pupilas do tédio, o sol proletário a encher de areia a retina dos afetos. Tudo cada vez mais seco.

Pinguei um pouco de poesia nos olhos. As palavras umedeceram-me a vista. Lacrimejei despropósitos, rosiei (in)utensílios, pisquei clara e enigmaticamente.

No céu, mitificada, a lua então se anunciava: pra(n)teada de metáforas."

(Poema de um grande amigo)


“Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher as rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser uma linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas [...] Pois é preciso amar o inútil porque no inútil está a Beleza.. No inútil também está Deus.”

(Lygia Fagundes Telles, em Ciranda de Pedra)

sábado, 4 de março de 2017

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


Ferreira Gullar, Na Vertigem do Dia. 1980.


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

(Ferreira Gullar)

quinta-feira, 2 de março de 2017

"Tenho o privilégio de não saber quase tudo.
E isso explica o resto.

(Manoel de Barros)
São demais os perigos desta vida
Pra quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua chega de repente
E se deixa no céu, como esquecida

E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer de tão perfeita

Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua


(Vinícius de Moraes)

quarta-feira, 1 de março de 2017

Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.


(Manoel de Barros)